domingo, 17 de dezembro de 2023

O que é mais importante

Ontem, peguei um Uber com a família para ir ao concerto natalino da UFC. Momento maravilhoso da nossa universidade, que completa 69 anos e se reencontra com a democracia e a universidade. Impactante. 
Mas, vivemos em tempos tão intensos e cheios de significados e contradições, que esse texto vai tomar um outro rumo. 
Subi no carro e notei que na porta, naqueles bolsos que, a depender do modelo do automóvel, podem ser enormes, havia um chocalho para bebês. Não pude deixar de dar um sorriso involuntário. 
No caminho fomos falando daquelas amenidades que motorista e passageiro trocam de forma quase universal: o clima, costumeiramente quente no fim do ano, o trânsito, igualmente pesado no começo da noite de sábado. 
Até que ele começa a mexer no app da plataforma e solta desanimado: "Hoje, não fiz cem reais de apurado". 
Começamos a falar sobre o trabalho por app, as longas e extenuantes jornadas, os sufocos, os clientes chatos e os que ele adorou conduzir. 
Então ele se volta pra mim e dispara: 
"Depois da sua vou pegar mais uma corrida e vou para casa. Essa época do ano, melhor está com a família à noite. Com a esposa, a minha menininha e o bebê. Ainda tem minha sogra que tá nos visitando". 
Observei o quanto era importante estar com os filhos pequenos. Ainda mais nessa época do ano. 
"Se é! E crescem muito rápido. E não quero perder nada deles. Por nada. Muito menos por trabalho. Vou para casa, brinco com eles, fico com a família. E amanhã, domingo, saio e faço o dinheiro para pagar os cartões". 
Chegamos, nos despedimos e desci do carro. Durante a apresentação, com músicas belíssimas, que deviam me transportar aos céus, fiquei o tempo todo nesta terra mesmo. Pensando em quantos pais e mães perdem tantas coisas, dando duro para trazer os recursos necessários para família. Quanto a voracidade do capitalismo nos desumaniza a ponto de transformar a cada um de nós engrenagens do sistema. 
Jornadas de trabalho amplas e sem nenhum sentido. Postos de trabalho fechados sem nenhuma reflexão do impacto social. Desigualdades naturalizadas ao extremo. E pensar que o natal celebra o nascimento de um homem que, acima de tudo, prezava a justiça social, a igualdade.

quinta-feira, 7 de dezembro de 2023

Natal brasileiro

Natal no Brasil não tem neve. Aliás é em pleno verão. As noites de dezembro são quentes e de céu limpo. Pena que não dá pra ver quase nenhuma estrela por causa da poluição luminosa de nossas cidades. Que na época tende a aumentar, porque as casas, as ruas, as praças, os prédios públicos, tudo recebe luzes extras, piscas-piscas, os chafarizes são iluminados por luzes coloridas que bailam junto com as águas. Enfim, luzes artificiais até as retinas queimarem.
A véspera de nata é um dia movimentado. As casas estão em alvoroço fazendo os preparativos e as cozinhas parecem não parar um minuto, quentes como a oficina do velho Vulcano, fogões e fornos, preparando pratos aos quais as famílias só decidem preparar nesse dia. Lembro da devassa que se fazia nos velhos armários em busca das receitas, copiadas em folhas de caderno, ou recortadas de jornais e revistas, que ficavam escondidas durante todo o ano, e que só no dia do preparo, lembravam de procurar.
De posse da receita, vem o corre-corre na mercearia, no supermercado, para comprar ingredientes para a ceia: uvas passas (evitarei juízos de valor, diante da eterna disputa, entre quem gosta e quem não gosta), castanhas, temperos exóticos, cujo frasco, ainda pela metade, depois de ser usado na ceia de natal e de ano novo será jogado fora, por não prestar mais, o refrigerante de três litros, sempre presente nas gôndolas, a cada final de ano (parabéns aos marqueteiros), o tradicional Peru, que para boa parte da famílias, agora é a ave natalina (um frango grande e inchado, graças a superexposição aos hormônios) e o que mais exigisse a ceia: pratos salgados, sobremesas, bolos. Os mais pobres também se esmeram. Há de aparecer um galeto, uma peça de boi ou porco, um arroz, salpicado de ervilhas, uma sobremesa gelada. O capitalismo, dizem, garante comilança para todos, basta se esforçar muito. Pena que, para alguns, mesmo levantando antes do sol e se deitando quando ele já se pôs faz tempo, ainda é difícil ter o que comer a mesa, durante todo o ano, quanto mais no Natal.
Quando a noite cai, começa o vaivém de pessoas às casas umas das outras, uma visita para desejar boas festas, uma olhada na rua, procurando ver a casa mais enfeitada, a árvores mais bonita. A maioria em roupas novas, ou pelo menos limpas. Engraçado ver, aqui no meu Ceará, as casas se enchendo de pinheiros, pinhas, com algodão ou isopor imitando neve, criando uma paisagem artificialmente fria, enquanto as pessoas suam em bicas. Ainda tem as famílias, que morando distante, resolvem se reencontrar. Vem de carro, ônibus, de uber. Trazem os filhos, para que estes possam ver e ser vistos pelos avós, tios e tias, pelos primos. Geralmente na casa dos velhos patriarcas da família (também são artes do capital que os filhos morem em cubículos cada vez menores se comparados às casas dos pais, sejam de que classe for. Lembremos que as exceções confirmam a regra). Todo mundo traz um prato nessas ocasiões (Pratos devidamente divididos nos grupos de whatsapp, não sem alguma briga... afinal, sempre tem o pão duro que diz todos os anos que levará o arroz).
As crianças brincam, esquecidas de que não devem sujar as roupas antes da ceia. Primos e primas que nunca se veem, tratam-se como velhos amigos e os pais daqueles que tenham qualquer talento, por mínimo que seja, vão aproveitar qualquer chance que tiverem para tirar vantagem disso. E teremos as conhecidas piadas sem graça, as histórias dos natais passados.
A ceia, tradicionalmente, à meia-noite, está quase em desuso. Quem suportaria tanta gente em casa, por tanto tempo? O wi-fi não chega para todos, a casa está ainda mais quente e os assuntos das não chegam a envolver todo mundo. Então, come-se, bebe-se e todos vão se despendido. A excessão de um ou outro, que fica por ali, e consegue dormir, num sofá ou numa rede, sob a desculpa de que não tem transporte, ou que bebeu demais para dirigir, ou que as crianças já pegaram no sono.
Como não temos reis magos (cá entre nós, a gente ia aguentar esperar o janeiro para receber os presentes), apelamos para o velho Noel, que embora seja representado conforme nos EUA, chegou até nós pelos franceses (ainda bem, já pensou as piadinhas se tivéssemos pego direto dos ianques? Santa Claus?).
As crianças já acordam de manhã rasgando os embrulhos, sob o olhar inconformado dos que gostam de desembrulhar com cuidado para usar o papel de presente em outra ocasião. E brincam a valer com o que receberam. Alguns não chegam ao almoço de natal inteiros.
Mas tem um monte de criança que não teve Papai Noel, nem ceia, muito menos um lar. Coisas de uma sociedade desigual. Porque Natal deveria ser amor, compreensão comunidade. E acaba que cada vez mais tem sido consumo, ostentação e individualidade.
Mas, sigamos. Um menino pobre, nasceu na Palestina, já faz milênios. Viveu pelas periferias, fez bicos com a família. E quando cresceu, saiu pelo mundo falando de amor, igualdade e fraternidade, no meio de bêbados, prostitutas e outros pecadores. Cidadão de bem virava a cara para ele. Foi perseguido, preso, recebeu julgamento apressado e condenado sem provas. Este Jesus, sem coroa, sem cetro, pobre como a maioria de nós, o Jesus de Nazaré, de mãos calejadas e que gostava de contar histórias, enquanto convivia com os amigos, em comunidade, é bem mais apropriado, para nós brasileiros que o bebê da manjedoura de Belém. Acordemos para isso. E quem sabe o nosso natal será bem mais justo. Menos desigual. Cheio de sentido. Um verdadeiro Natal.