domingo, 17 de dezembro de 2023

O que é mais importante

Ontem, peguei um Uber com a família para ir ao concerto natalino da UFC. Momento maravilhoso da nossa universidade, que completa 69 anos e se reencontra com a democracia e a universidade. Impactante. 
Mas, vivemos em tempos tão intensos e cheios de significados e contradições, que esse texto vai tomar um outro rumo. 
Subi no carro e notei que na porta, naqueles bolsos que, a depender do modelo do automóvel, podem ser enormes, havia um chocalho para bebês. Não pude deixar de dar um sorriso involuntário. 
No caminho fomos falando daquelas amenidades que motorista e passageiro trocam de forma quase universal: o clima, costumeiramente quente no fim do ano, o trânsito, igualmente pesado no começo da noite de sábado. 
Até que ele começa a mexer no app da plataforma e solta desanimado: "Hoje, não fiz cem reais de apurado". 
Começamos a falar sobre o trabalho por app, as longas e extenuantes jornadas, os sufocos, os clientes chatos e os que ele adorou conduzir. 
Então ele se volta pra mim e dispara: 
"Depois da sua vou pegar mais uma corrida e vou para casa. Essa época do ano, melhor está com a família à noite. Com a esposa, a minha menininha e o bebê. Ainda tem minha sogra que tá nos visitando". 
Observei o quanto era importante estar com os filhos pequenos. Ainda mais nessa época do ano. 
"Se é! E crescem muito rápido. E não quero perder nada deles. Por nada. Muito menos por trabalho. Vou para casa, brinco com eles, fico com a família. E amanhã, domingo, saio e faço o dinheiro para pagar os cartões". 
Chegamos, nos despedimos e desci do carro. Durante a apresentação, com músicas belíssimas, que deviam me transportar aos céus, fiquei o tempo todo nesta terra mesmo. Pensando em quantos pais e mães perdem tantas coisas, dando duro para trazer os recursos necessários para família. Quanto a voracidade do capitalismo nos desumaniza a ponto de transformar a cada um de nós engrenagens do sistema. 
Jornadas de trabalho amplas e sem nenhum sentido. Postos de trabalho fechados sem nenhuma reflexão do impacto social. Desigualdades naturalizadas ao extremo. E pensar que o natal celebra o nascimento de um homem que, acima de tudo, prezava a justiça social, a igualdade.

quinta-feira, 7 de dezembro de 2023

Natal brasileiro

Natal no Brasil não tem neve. Aliás é em pleno verão. As noites de dezembro são quentes e de céu limpo. Pena que não dá pra ver quase nenhuma estrela por causa da poluição luminosa de nossas cidades. Que na época tende a aumentar, porque as casas, as ruas, as praças, os prédios públicos, tudo recebe luzes extras, piscas-piscas, os chafarizes são iluminados por luzes coloridas que bailam junto com as águas. Enfim, luzes artificiais até as retinas queimarem.
A véspera de nata é um dia movimentado. As casas estão em alvoroço fazendo os preparativos e as cozinhas parecem não parar um minuto, quentes como a oficina do velho Vulcano, fogões e fornos, preparando pratos aos quais as famílias só decidem preparar nesse dia. Lembro da devassa que se fazia nos velhos armários em busca das receitas, copiadas em folhas de caderno, ou recortadas de jornais e revistas, que ficavam escondidas durante todo o ano, e que só no dia do preparo, lembravam de procurar.
De posse da receita, vem o corre-corre na mercearia, no supermercado, para comprar ingredientes para a ceia: uvas passas (evitarei juízos de valor, diante da eterna disputa, entre quem gosta e quem não gosta), castanhas, temperos exóticos, cujo frasco, ainda pela metade, depois de ser usado na ceia de natal e de ano novo será jogado fora, por não prestar mais, o refrigerante de três litros, sempre presente nas gôndolas, a cada final de ano (parabéns aos marqueteiros), o tradicional Peru, que para boa parte da famílias, agora é a ave natalina (um frango grande e inchado, graças a superexposição aos hormônios) e o que mais exigisse a ceia: pratos salgados, sobremesas, bolos. Os mais pobres também se esmeram. Há de aparecer um galeto, uma peça de boi ou porco, um arroz, salpicado de ervilhas, uma sobremesa gelada. O capitalismo, dizem, garante comilança para todos, basta se esforçar muito. Pena que, para alguns, mesmo levantando antes do sol e se deitando quando ele já se pôs faz tempo, ainda é difícil ter o que comer a mesa, durante todo o ano, quanto mais no Natal.
Quando a noite cai, começa o vaivém de pessoas às casas umas das outras, uma visita para desejar boas festas, uma olhada na rua, procurando ver a casa mais enfeitada, a árvores mais bonita. A maioria em roupas novas, ou pelo menos limpas. Engraçado ver, aqui no meu Ceará, as casas se enchendo de pinheiros, pinhas, com algodão ou isopor imitando neve, criando uma paisagem artificialmente fria, enquanto as pessoas suam em bicas. Ainda tem as famílias, que morando distante, resolvem se reencontrar. Vem de carro, ônibus, de uber. Trazem os filhos, para que estes possam ver e ser vistos pelos avós, tios e tias, pelos primos. Geralmente na casa dos velhos patriarcas da família (também são artes do capital que os filhos morem em cubículos cada vez menores se comparados às casas dos pais, sejam de que classe for. Lembremos que as exceções confirmam a regra). Todo mundo traz um prato nessas ocasiões (Pratos devidamente divididos nos grupos de whatsapp, não sem alguma briga... afinal, sempre tem o pão duro que diz todos os anos que levará o arroz).
As crianças brincam, esquecidas de que não devem sujar as roupas antes da ceia. Primos e primas que nunca se veem, tratam-se como velhos amigos e os pais daqueles que tenham qualquer talento, por mínimo que seja, vão aproveitar qualquer chance que tiverem para tirar vantagem disso. E teremos as conhecidas piadas sem graça, as histórias dos natais passados.
A ceia, tradicionalmente, à meia-noite, está quase em desuso. Quem suportaria tanta gente em casa, por tanto tempo? O wi-fi não chega para todos, a casa está ainda mais quente e os assuntos das não chegam a envolver todo mundo. Então, come-se, bebe-se e todos vão se despendido. A excessão de um ou outro, que fica por ali, e consegue dormir, num sofá ou numa rede, sob a desculpa de que não tem transporte, ou que bebeu demais para dirigir, ou que as crianças já pegaram no sono.
Como não temos reis magos (cá entre nós, a gente ia aguentar esperar o janeiro para receber os presentes), apelamos para o velho Noel, que embora seja representado conforme nos EUA, chegou até nós pelos franceses (ainda bem, já pensou as piadinhas se tivéssemos pego direto dos ianques? Santa Claus?).
As crianças já acordam de manhã rasgando os embrulhos, sob o olhar inconformado dos que gostam de desembrulhar com cuidado para usar o papel de presente em outra ocasião. E brincam a valer com o que receberam. Alguns não chegam ao almoço de natal inteiros.
Mas tem um monte de criança que não teve Papai Noel, nem ceia, muito menos um lar. Coisas de uma sociedade desigual. Porque Natal deveria ser amor, compreensão comunidade. E acaba que cada vez mais tem sido consumo, ostentação e individualidade.
Mas, sigamos. Um menino pobre, nasceu na Palestina, já faz milênios. Viveu pelas periferias, fez bicos com a família. E quando cresceu, saiu pelo mundo falando de amor, igualdade e fraternidade, no meio de bêbados, prostitutas e outros pecadores. Cidadão de bem virava a cara para ele. Foi perseguido, preso, recebeu julgamento apressado e condenado sem provas. Este Jesus, sem coroa, sem cetro, pobre como a maioria de nós, o Jesus de Nazaré, de mãos calejadas e que gostava de contar histórias, enquanto convivia com os amigos, em comunidade, é bem mais apropriado, para nós brasileiros que o bebê da manjedoura de Belém. Acordemos para isso. E quem sabe o nosso natal será bem mais justo. Menos desigual. Cheio de sentido. Um verdadeiro Natal.

sábado, 25 de novembro de 2023

Devaneios

Do alto da colina eu olho e vejo o mundo. As pessoas que passam anônimas lá embaixo, no incessante vai e vem de suas vidas. Algumas seguem alegres, muitas tristes, mas a maioria está indiferente. 
Mulheres e homens, de todas as idades, crianças que passam para a escola ou apenas brincando, tudo chama a minha atenção. 
A distância dá a impressão que ali está uma massa informe e indistinta. Mas não. Há vidas ali. Cada um com seus amores, tristezas, ansiedades e uma infinidade de outros sentimentos.  
Bilhões de seres humanos. Almas sedentas de algo que nem sabem bem o que é. Mas todos seguem na busca do que se pode chamar de sentido. 
E eu, ali, como um demiurgo me ponho a refletir sobre o tanto que nós mesmos contribuímos para que as vidas de tantos sejam tão incompletas. 
O mundo sempre foi injusto. Deveria deixar de sê-lo. Cabe a nós mudar isso. 

sábado, 28 de outubro de 2023

Servidor Público

Ligo a tv. O apresentador, elegante, fala de desperdício de dinheiro público. Corrupção. Fala da ineficiência das empresas estatais. Outra matéria. A parceira de bancada, chama outra matéria. Filas no hospital. Ou falta de vagas nas escolas. A depender do período do ano, a matéria é sobre uma greve,as o foco nunca é a reivindicação ou a falta de negociação do governo, mas, alguém que está revoltado com os grevistas fala que não aguenta mais. 
Depois do show de horrores, um comentarista, que geralmente tem ligações com os think tanks de direita. Ele crítica duramente o serviço público. Aciona a sua cantilena sobre a eficiência do privado e como a abertura do mercado garantiria preços acessíveis mesmo para a população mais pobre.
Sempre está em pauta. E a solução para os problemas é sempre a mesma. 
Desligo e vou para o trabalho. Garantir que a universidade pública continue a cumprir com a sua missão de levar ensino, pesquisa e extensão. Examinar os processos, revisar planilhas, participar de reuniões para encontrar maneiras de fazer as ações caberem no orçamento. Almoço correndo e volto para o setor. A tarde, mais trabalho. 
Lá pelas 15 horas, eu vou a copa, pego um pouco de café, deixo a contribuição para comprar café e açúcar para o mês. A copeira avisa que o gas está acabando e que quando comprar ia dividir para colocar na cota do mês seguinte. Nós despedimos e vou para o pátio, onde sento um pouco para sorver o líquido que vai me ajudar a focar no restante do dia. Cinco minutinhos para respirar. Uns alunos passam. Me olham. Ouço o comentário:
"Passar no concurso para passar a tarde olhando o céu, enquanto tomo um café". 
Risos. Termino o café. Na sala, confiro o e-mail, que informa que alguns alunos informaram dados errados para a viagem de visita técnica. Entro em contato com cada um. Tudo resolvido. Passa das 17:45 quando encerro o trabalho. Volto para casa. 
No dia seguinte, um sábado, de manhã, olho o celular. Uma mensagem lacônica:
"Feliz dia do servidor". 
Essa é a rotina. E sigo com ela. Porque sei que é do trabalho de tantas e tantos servidoras servidores que dependem os cidadãos brasileiros para terem acesso a seus direitos! 

terça-feira, 24 de outubro de 2023

Afiar o machado

 Quando os portugueses chegaram nas costas do Brasil trataram logo de explorar a riqueza que eles encontraram: o pau-brasil. Dessa árvore era retirado um corante vermelho que era muito valorizado na Europa pra tingir roupas. 

Até aí, ok. Mas, cortar as toras no meio da mata e transportar até os navios não era um trabalho nada fácil. E era ainda mais difícil para tripulações que chegavam da travessia do Atlântico, fracos e anêmicos devido a pouca e má alimentação fornecida nos navios. A solução para isso foi utilizar a mão de obra indígena. Forçada ou por meio do escambo. O fato era que, no início, os indígenas utilizavam suas próprias ferramentas para o trabalho. à medida em que aumentava a demanda europeia pelo pau de tinta brasileira, passaram a fornecer ferramentas de ferro para que o trabalho pudesse ser agilizado. O machado de ferro fez um enorme sucesso, por facilitar o trabalho de corte. 

O tempo foi passando e logo surgiram indígenas que se destacavam no manuseio do instrumento. Em um certo ponto do litoral da Bahia, um velho indígena ostentava o título de melhor cortador de pau de tinta da aldeia. Ao virem recolher as toras ele era celebrado pelos europeus e recebia muitos presentes. Um jovem, ao ver aquilo, cheio de inveja (sentimento que se espalhava pela terra como os brancos em seus navios), começou a dizer que, o velho tinha feito muito, mas no passado, mas que ele, agora era o maior cortador de pau-brasil, não só na aldeia, mas em toda a capitania. 
Ouvindo isso, e pensando em tirar vantagens um dos contratadores brancos resolveu apostar qual dos dois indígenas seria o maior cortador de toras. O vencedor seria honrado entre os brancos, como nunca antes. 
No dia aprazado compareceram, toda a aldeia e os dois indígenas. O mais novo, de machado em punho, pronto para iniciar a derrubada das árvores, O mais velho, com seu machado ainda a tiracolo. Ao sinal do contratador, o jovem se lançou sobre a mata e começou a golpear o tronco que viu mais próximo. O ancião, sentou-se em um toco e tendo tomado uma pedra de amolar, ficou afiando seu machado. 
A aldeia, cheia de respeito pelo velho cortador, olhava entristecida para o homem que ficava para trás, enquanto o rapaz já derrubava a primeira árvore. Só então o experiente ancião se levantou e foi calmamente para a mata e começou a trabalhar. Em pouco tempo, com o machado mais afiado, retirou a diferença entre ambos. Mas usando sua força e vitalidade, o rapaz seguia à frente. 
Lá pelo meio da tarde, o homem mais novo estava bem mais cansado que o velho. Seu machado já perdera o fio e ele usava toda a sua força para dar um golpe, que muitas vezes nem sequer arranhava a superfície da árvore. Antes do pôr do sol, ele exausto caiu, enquanto o ancião, continuava cortando. As toras cortadas pelo velho superavam em muito as que o jovem cortara. 
Quando tudo terminou, depois de receber as honras dos brancos, o velho foi até onde, envergonhado, o cortador mais novo estava sentado. 
"Você é muito bom. Melhor até do que eu, de verdade. Mas você se esquece que a preparação já é parte do trabalho. Eu sentei e afiei mais o machado. Cortava melhor e mais fácil que o seu e me faziam usar menos força". 
O rapaz ouviu e aprendeu a lição, mas enquanto o velho viveu ele jamais disputou com ele a primazia entre os cortadores. E essa é uma lição que todos deveríamos aprender. Não podemos nos lançar sobre nossas tarefas, quaisquer que sejam, no trabalho, na família, nos estudos, sem nos prepararmos. 
Por vezes, determinadas situações querem nos fazer agir precipitadamente. Mas é preciso manter a calma, analisar o contexto, tentar visualizar que opções temos. E só então agir. Para que a atitude tomada possa trazer os resultados desejados. 
Por vezes os problemas que temos não devem ser enfrentados como se numa corrida de cem metros rasos. Tratar como se estivessem em uma maratona, com estratégia, pesando os prós e os contras, buscando entender o momento, vai te trazer resultados melhores. 

Que cada um de nós possa dedicar tempo a afiar seu machado! 


domingo, 22 de outubro de 2023

Organizar os oprimidos: um soneto

Estouram espumantes no topo, 
Embaixo, estampido das balas.
Lá, o desperdício é escopo,
Cá, não tem nem mesmo sopas ralas.

Riqueza, opulência a poucos;
Para muitos pobreza factual;
Coisas de um sistema desigual, 
Que chama, quem o nega, de loucos.

Organizar quem sofre opressões, 
Se colocar contra às omissões
Para lutar contra as exclusões.

São pontos deveras necessários, 
Para vencer nossos adversários, 
O grande capital seus corsários.

quinta-feira, 12 de outubro de 2023

Assiti e gostei: A última viagem do Demeter

Sempre achei que em todas as adaptações cinematográficas do fantástico livro de Bram Stocker, que a história da travessia marítima do vampiro da Romênia a Inglaterra era pouco aproveitada. 
Esse filme mostrou o potencial. É aterrorizante. Não há um vampiro sedutor, bem vestido. Mas um animal sedento de sangue. Apenas o mal puro e simples, com uma imensa sede de sangue. 
Sabemos como tudo termina. Mas a forma que o diretor Overald escolheu para contar levou a surpresas agradáveis. 
Enfim, vale a pena assitir!

quarta-feira, 11 de outubro de 2023

vem novidade aí: novo livro pela Editora Pendragon

E aí, camaradas? Passando aqui para contar pra vocês que em 2024 estarei lançando um livro de ficção fantástica pela Editora Pendragon. Estamos avançando para um o lançamento de um projeto totalmente novo. 
Muitos aqui devem conhecer meus textos aqui do blog, podem ter lido meus contos e mesmo conhecido minhas publicações científicas. 
Mas também escrevo ficções mais longas e essa é a primeira a ser publicada! 
Sinopse: O caçador de sereias e sua tripulação amaldiçoada estão próximos de capturar a sereia que perseguem há mais de um século. No entanto, as coisas não ocorrem como o planejado, afinal, nada é como parece.
O sobrenatural ainda é passível de ser domado pelas mentes humanas.
Então, espero que estejam juntos comigo a aventurar-se pelas misteriosas águas do mar do Brasil! 

sexta-feira, 29 de setembro de 2023

Algumas considerações sobre raça

 Sou um homem negro de pele clara. Já fui olhado com suspeitas em determinados ambientes, já fui preterido em empregos, já fui confundido com entregadores, faxineiros, zeladores e outras coisas mais. Porque para uma sociedade erigida sobre tantas desigualdades e à custa do sangue e do trabalho de escravizados, tratar como cidadãos de segunda classe, os descendentes desses escravizados. Por tudo isso precisamos combater o racismo e o sistema que utiliza deste como forma de divisão e controle dos que trabalham. 

Mas esse texto é para relatar alguns coisinhas que aconteceram esse mês e que são bem mais corriqueiras do que se pode pensar para a maioria dos brasileiros negros, retintos ou pardos. Neste mês de setembro realizei um viagem de ônibus. Saí daqui do Rio Grande do Sul e fui ao Rio de Janeiro. Uma excursão com quarenta e poucas pessoas. Dessas, eu e minha companheira éramos dois cearenses em meio aos gaúchos. 

 Em determinado ponto da viagem, paramos para o banho. me dirijo aos chuveiros e sou abordado por um funcionário do paradouro. 

"Oi, amigo, vais para onde?"

"Ao chuveiro". 

"E o lá de fora, não está funcionando?"

"Não sei te dizer. É a primeira vez que estou nessa viagem e me indicaram que o banho era aqui". 

"Não e não. É lá fora. Vocês tomam banho, ali, por trás do posto. compra a fichinha ali no restaurante".

Ouvindo a explicação, fui ao restaurante, comprei a ficha e fui ao local do banho. Um ponto de caminhoneiros. Estranhei que mais ninguém da excursão tivesse ido para lá também. Ao retornar ao ônibus a surpresa: apenas eu, fui impedido de tomar banho ali e encaminhado ao ponto dos caminhoneiros.  O guia, solícito, foi buscar esclarecimentos. Recebi um pedido de desculpas. O funcionário julgou que eu fosse caminhoneiro. Eu. Apenas eu. Em toda a excursão. Fui confundido com um caminhoneiro. A cor da pele e meu sotaque nordestino foram provas suficientes para o funcionário considerar que eu não deveria tomar banho, ali, no paradouro com os demais clientes. 

Segui viagem refletindo sobre isso. Como nosso país é essa máquina de desigualdade, a ponto de um trabalhador não poder tomar um simples banho em um paradouro. E que as pessoas que não se encaixem em um determinado perfil, também sejam excluídas. E a justificativa seja essa: pensei que você fosse caminhoneiro, entregador, faxineiro, etc. Todo trabalho é digno. 

Chegamos ao Rio e como sempre, a estadia na cidade maravilhosa vale a pena. No hotel em que ficamos fiz amizade com um funcionário, que se divertia, jogando conversa fora com os hóspedes. No ultimo dia de nossa hospedagem, ele me chamou num canto e disparou: 

"Vem cá, de onde vocês são?  Porque vocês estão no meios dos gaúchos, mas não falam como eles. E... e, você é negão, não tem cara de gaúcho". 

Eu ri. E expliquei que era cearense e que estava morando no Sul. 

"Logo vi. Essa fala de vocês, e tu, negão assim, não podia ser gaúcho". 

Mais uma vez fiquei pensando nos estereótipos. Desde que cheguei aqui, no Rio Grande do Sul, vi uma herança negra riquíssima e uma população negra, que resiste aos apagamentos e que faz questão de dizer a branquitude: estamos aqui. 

Relatos de uma viagem de oito dias. Quantos relatos mais se pode colher Brasil a fora? Eu, de minha parte, sigo lutando por meu espaço e para que essa nódoa tão persistente, chamada racismo, possa ser apagada de nossa sociedade. E que nós, trabalhadoras e trabalhadores, possamos ser os operadores dessa mudança. Desconstruir o racismo é uma luta de raça e classe. 

quarta-feira, 2 de agosto de 2023

Inveja

Ouvi essa história já tem um tempo. Relato aqui tal como me lembro dela. Por volta do século V, o Império Bizantino se estendia pela Ásia Menor, Oriente Médio e Norte da África. Por essa época, começaram a surgir figuras que ficaram conhecidas como Estilistas, palavra que pode ser entendida como Santos do Pilar. 
Eram cristãos, que escolhiam uma vida de contemplação e privações, na busca pela santidade. Subiam, ao alto de uma coluna e lá viviam, recebendo por uma cesta, que era baixada e alçada por uma corda, a alimentação frugal que consumiam. 
Conta-se que um destes homens, estava a ponto de alcançar a santidade. Então, os demônios das redondezas reuniram-se para tentá-lo e impedir que sua consagração lhe alçasse aos céus. Foram dias de tentação e o velho ermitão resistindo. 
Ora, Satanás, que segundo a Bíblia fica a rodear a terra e passear por ela, passou por aquela coluna, lá na Síria e viu seus asseclas já a ponto de desistir. 
O anjo caído viu aquilo e notou como o estilita estava ali, impassível. Nada parecia abalar aquele homem a caminho da santidade. 
Mas, Lúcifer, conhecedor da humanidade desde seus primeiros dias, chamou a si seus subordinados. 
"Dessa forma, nunca conseguirão. Deixe-me mostrar como se faz isso". 
Então, Satanás foi até o velho. O ancião permaneceu de olhos fechados, sem importar-se que o maioral do inferno estivesse a seu lado. Então, a antiga serpente se aproximou de seu ouvido e sussurrou: 
"Seu primo acaba de ser nomeado bispo de Constantinopla". 
E nada mais disse. O velho abriu os olhos. Sua paz de espírito se fora. Bem como a santidade. 

quarta-feira, 7 de junho de 2023

Uma parábola turca

 Lá pelo século XIX, havia nas colinas da Anatólia, na Turquia, um povoado de criadores de ovelhas. A única riqueza que possuíam era o rebanho de ovelhas, o qual era tosquiado uma vez ao ano. A lã daí resultante era repartida entre as famílias para a confecção de roupas e o excedente levado para vender. A renda obtida era usada para comprar tudo o que o povoado necessitava e não conseguia produzir e era repartida coletivamente.

Um dia o velho edil, uma espécie de líder do povoado resolveu que queria andar pelo mundo e colocou em seu lugar dois irmãos, Nuredin e Ibrahim. Era ambos inexperientes, mas pareciam a todos pessoas excelentes e ficaram todos felizes com a escolha.

Nuredin tomou a seu encargo o cuidado com a pequena renda da lã, que deveria ser administrada para durar durante um ano, de uma tosquia a outra. Quando entrou na tesouraria descobriu que as melhorias realizadas pelo antecessor haviam consumido toda a renda. Não havia o que fazer. Tudo fora utilizado para beneficiar a comunidade. Mas agora era preciso fazer pequenos sacrifícios para garantir a sobrevivência do povoado. Organizou um racionamento, imaginando a necessidade de prolongar os recursos armazenados.

Isso era realmente muito impopular. Ibrahim se juntou aos que diziam que nunca precisaram fazer isso e agora Nuredin inventava de querer mudar as coisas. Argumentavam que era impossível sobreviver sem manter o mesmo nível de consumo. Mas, Nuredin foi firme. Ele sabia o que estava fazendo. Tentou explicar, mas não foi ouvido.

“Ora”, dizia Ibrahim, “mantemos tudo como está e se vier a faltar antes da tosquia, vendemos algumas ovelhas”.

Nesse ínterim, o velho Edil voltou. Queria ocupar seu cargo novamente. Mas como? Vendo o descontentamento, resolveu apoiar os contrários a Nuredin. Ele, dizia a todos, saberia como fazer e que o que Nuredin estava fazendo era importante, mas desnecessário, coisa da inexperiência do jovem.

E esse argumento convenceu a todos. Sem suportar mais tantas adversidades e perseguições do seu próprio povo, Nuredin renunciou e partiu. Foi-se embora sem olhar para trás. A primeira coisa que fizeram foi uma grande comemoração. Mataram algumas ovelhas e fizeram um festival para celebrar a união da juventude e da experiência.

Algum tempo depois, os produtos armazenados acabaram. Para comprar mais tiverem que vender mais algumas ovelhas. E assim fizeram alegremente. A venda das ovelhas rendeu até mais do que a lã.

No entanto, quando da tosquia, o número de ovelhas era tão diminuto, que mal deu para dividir segundo a necessidade de roupas de cada um. Quanto mais para ter um excedente e vender. Para conseguir comprar os produtos que não produziam na comunidade venderam mais ovelhas. No ano seguinte, não houve tosquia. Não havia mais ovelhas. Não havia sequer um povoado. Essa amigos é uma história que se passou a mais de duzentos anos. Quem passeia por aquelas colinas ainda pode contemplar as ruínas de um povoado outrora próspero.

Por vezes, quem te dá um NÃO faz isso porque deseja o melhor para você! 

terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

Uma fábula

Não lembro onde ou de quem ouvi essa história. Mas vou compartilhá-la aqui, porque ela vem a calhar com o momento. A Savana é habitada por diversas espécies de animais. Alguns enormes, outros minúsculo. Dentre esses havia um leão. Uma fera para não se colocar


defeitos.

 Certo dia, cansado, deitou-se sob uma sombra para dormir. No entanto não conseguia. Uma mosca zumbia e zumbia sobrevoando sobre sua cabeça. Furioso saltou sobre ela, que pequenina escapou, mas continuou fazendo piruetas no ar diante do animal que tentava pegá-la, mordê-la, acabar com ela. Divertida, por estar incomodando incólume um leão feroz, continuou por horas até que, cansada, deixou o leão e se foi para outro lugar. 

Cheia de si, a mosca foi procurar outras moscas para contar sua peripécia. Ia tão feliz, alegre, que não atentou para a teia de aranha em seu caminho. A mosca destemida que fustigou um leão a tarde inteira, tornou-se o jantar de uma aranha despretensiosa que adorou ter uma vítima cansada, sem forças para se debater tentando fugir de sua teia. Reflitamos sobre quais são os verdadeiros desafios que devemos enfrentar. Não adianta atacar quem não é seu inimigo, e acabar sendo tragado por aquilo que realmente te ameaça

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2023

Passeio matinal

 Hoje, meu pet me acordou às cinco e meia. Depois de alguma insistência me levou para passear. Seis da manhã. Ninguém na rua. Um ou outro automóvel passando veloz. E eu seguindo um cãozinho pela manhã a fora. 



Esse ritual repete-se todos os dias. Com sol, com chuva. No calor ou no frio. O carinha acorda e nada o faz ficar em casa. Então andamos por aí. Vemos o bairro acordar. As pessoas saindo tímidas de casa, olhando para um lado e outro da rua, para, resignadas, partirem para seus destinos. Alguns saem correndo. Atrasadas talvez. A todos o Ben, meu personal dog trainer, observa atentamente, como a tentar descobrir pra onde vão. 

Passamos pelas padarias, sentindo o cheirinho da próxima fornada de pães, vendo clientes e atendentes se cumprimentando, na mesma rotina, dia após dia. Penso no eterno retorno de Nieztche. Esse sou eu, quando não ponho poesia em tudo, vou colocando pitadas de filosofia. Um puxão do meu amigão me traz à realidade. Atravessamos a avenida para que ele possa “marcar o território”. 

E assim seguimos, de uma amenidade a outra. Pra nós, seres humanos, qual a importância disso? Quase nada. Evitar sujeira pela casa, consequência número um de não ter o passeio matinal. Mas, para o Ben, esse passeio matinal é essencial. Não fazer é quebrar os fluxos diários e isso retira sua segurança. 

Então seguimos. Ele à frente, eu atrás da guia. Às vezes uma ou outra confusão, vem dar cores de comédia a esse espetáculo trivial. Como da vez que tive que pôr o Ben no colo para fugir de um cachorro enorme que o meu pequeno maltipoo resolveu provocar.

Concluímos nosso passeio e voltamos para casa. Ele pula no sofá e quase que instantaneamente volta a dormir. Quanto a mim, chegou a minha vez de executar minha rotina, os rituais diários que a sociedade moderna exige de nós, para nós considerar saudáveis, produtivos e participantes. Mesmo que nenhuma dessas três coisas seja algo além de uma grande farsa…

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2023

Das coisas que cá eu vi e que nunca ia imaginar

 Cearense de muito vagar, pude andar pelos mais diversos lugares. Do meu Ceará mesmo, andei por muito canto. Estive nas cidades mais secas dos sertões semiáridos. No Brasil enfrentei o calor do Centro-Oeste, mas confesso que nada me preparou para o calorão úmido de Pelotas. Brincando, no verão, tomava 40° e tantos graus com sensação de 50°... Gente, por favor! Falamos que Sobra ou Juazeiro do Norte é quente, mas sensação de 50°, nunca experimentei no Ceará. 


E ficamos ainda mais chocados, porque lá no Nordeste a gente imagina essa terra aqui, como sendo de clima ameno, com temperaturas baixas no inverno. Mas a amplitude térmica é de deixar qualquer um maluco. E isso aí não é tudo. para além da sensação de calor ainda tinha aquela sensação de Game of Thrones: sempre que conversávamos com alguém sobre o calorão, já vinham dizendo; quando o inverno chegar, aí você vai ver... Semore isso! The winter is coming! 

E mais uma coisa: a gente o Nordeste imagina que aqui é tudo muito ligado aos imigrantes, alemães, italianos, e tal, tal, tal. Mas você chega e entra em contato com uma cultura muito forte e totalmente invisibilizada para fora do estado que é a cultura negra do Rio Grande do Sul! São manifestações culturais poderosas e que tomam conta das cidades. Os cultos afro, aqui ganham as ruas, as oferendas, diferente do que vemos no Ceará, tomam conta dos espaços urbanos com suas cores e seu clima de fé. Para quem conviveu com parte da família sendo adepta de cultos afro-brasileiros, mas escondidos, devido ao preconceito no Ceará, aqui foi uma grata surpresa ver como essas religiões tem seus espaço e como seus adeptos se orgulham delas. 

Essas são duas coisas marcantes que a gente nota e que surpreende quando chega aqui. Tantas diferenças, tantas semelhanças. E ainda estou aprendendo, Sempre. 

quinta-feira, 19 de janeiro de 2023

Um ano de Rio Grande do Sul: viemos para cá na cara e na coragem e num celtinha 2012

 Ano passado, dia 03 de janeiro, peguei o Ben, meu filho pet, chamei a esposa e um cunhado mala, nos enfiamos dentro do celtinha 2012 da minha mulher e fizemos mais de 4 mil quilômetros, saindo da Terra da Luz, o meu Ceará e indo para Pelotas, princesa do Sul. A aventura automobilística foi parte da aventura maior que foi vir fazer o meu doutorado. 

Foi uma longa viagem de 7 dias que resolvi, agora, um ano depois vir compartilhar aqui. Fiz poucas imagens e ainda menos vídeos, então terão de se contentar com a minha descrição. Espero fazer jus a miríade de sentimentos que me percorreram durante toda viagem. 

Tentarei deixar claro o que passamos, as situações delicadas e as engraçadas e dar um pouco das impressões que tivemos durante a viagem. Começamos a nos preparar par ela ainda em julho, quando, já aprovado no Doutorado, resolvi que iria ao Rio Grande do Sul, quando as aulas presenciais retornassem. 

Tendo isso claro, tinha duas opções: ir de carro ou de avião. Colocar na planilha os custos, listar prós e contras de cada opção (lá ia de novo falar em custo de oportunidades, vejam só). Para no fim dar o veredito final: vamos de carro para levar o Ben. Esse carinha aqui em baixo:  

Revisão no carro, balanceamento, um pente fino no automóvel, para evitar dificuldades maiores, e tudo isso numa ansiedade enorme, que vocês só podem imaginar. Por fim, ás 05 da manhã do dia 03 de janeiro de 2022, pegamos a estrada.

E logo estarei aqui para contar para vocês como foi cada trechinho da viagem!