quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

Sobre como Baudolino, de Umberto Eco, me salvou

             O ano era 2002. Ainda era pastor evangélico. Um certo sábado de julho estava de folga  e fora ao Centro da cidade. Compraria alguns itens necessários para a reunião do Domingo e voltaria para a Igreja. Mas por alguma razão, que até  hoje não entendo,acabei entrando em uma livraria. Era quase um sebo. Logo na entrada da loja, dezenas de títulos a preços promocionais. Você encontrava de tudo: paradidáticos, didáticos, enciclopédias, romances femininos, livros de idiomas, tudo empilhado sem organização alguma. Fiquei um tempo ali, como um garimpeiro remexendo o cascalho, em busca do ouro. Após um tempo, desisti da procura e adentrei mais na loja. Prateleiras por toda parte e, o melhor, quase ninguém entre elas. Poderia ficar bem a vontade. E foi o que fiz. Passei uma manhã inteira folheando livros, lendo-os, comparando edições.
             Saí da loja no começo da tarde com uma sacola e nela um livro que me chamara a atenção: Baudolino, de Umberto Eco. Conhecera Eco do seu livro maravilhoso, O nome da Rosa. Não que naquela época eu já tivesse lido o livro, na verdade só assistira o filme, estrelado por Sean Conery. Na verdade, quando me deparei com uma estante de escritores italianos, lembrei do filme e procurei pelo livro, mas ali eles não o tinham. A moça, uma bela loira de olhos verdes e um sorriso que faria um anjo pecar, me perguntou se eu não teria interesse no último livro de Eco, que também estava ambientado na Idade Média.
             "Melhor que nada", pensei. Comprei o livro e o levei comigo.  Joguei a sacola num canto do escritório e dei segmento a preparação para o culto de Domingo. No dia seguinte, o mais movimentado em uma igreja neo
pentecostal, passei o dia envolvido nas mais diversas atividades: atendimento de membros, batismo, reunião com os grupos de jovens, e evangelistas, enfim toda a azáfama rotineira que realizava aos domingos. A noite, enquanto dava uma organizada no escritório encontrei o livro.
             Encadernamento maravilhoso, uma capa que reproduzia uma iluminura, em cores que me encantaram. Fui ao quarto, e pus-me a ler. E não parei. Lia todos os dias após as reuniões. Ficava até altas horas acordado, dividindo o tempo entre as orações e a leitura e ao terminar estava completamente extasiado com o que acabara de ler!
              Ali, naquela leitura despretensiosa eu tive meu primeiro contato com os diferentes cristianismos que foram, ao longo dos séculos, derrotados pelo cristianismo atual. Pude descobrir o cristianismo nestoriano, pude conhecer um pouco do que acreditavam os gnósticos, fui apresentado ao drama de Ipásia, e tudo isso de forma irreverente e divertida, num livro, que como se pode constatar em seu epílogo não se leva muito a sério.
              Baudolino lançou em minha mente as sementes de uma inquietação. Minha própria Fé passei a ver com outros olhos. Comecei a pesquisar mais sobre o cristianismo primitivo, sobre os livros apócrifos, sobre o Jesus Histórico! Comecei a questionar os dogmas e as doutrinas. Não porque os considerasse errado, mas porque aqueles que me passavam esses preceitos, nada sabiam sobre como foram criados, suas origens.
               Quando deixei de ser pastor, busquei mais informações, ampliei minhas pesquisas e posso dizer finalmente, anos após ter deixado a Igreja: encontrei Jesus! Não o Deus onipotente, integrante da trindade, mas o profeta galileu, que com sua pregação itinerante, encheu de esperança um povo que a muito tempo não possuía motivos para sorrir! E pode acreditar, esta figura, que muito facilmente seria expulsa dos mega templos das igrejas de hoje em dia, é muito mais fascinante que o incompreensível Deus, que as multidões procuram diariamente em suas catedrais, templos e afins!
               A propósito, leiam o livro, vocês também vão se divertir, aprender e se encantar com a história do incrível mentiroso do Vale do Rio Pó! Não o tomes como um tratado de teologia, embora aborde muita coisa e até possas aprender com ele. É um ponto de partida, se deseja explorar mais, toma teu cajado e segue a vereda, tal como eu fiz. Não se preocupe em saber aonde vais, nem com a chegada, o que vale é a jornada, que será maravilhosa!
               E se me perguntas, me salvou de quê? Eu posso te dizer que me salvou de uma vida insípida, sem cor, a vida de um autômato que abdicou de tudo por  uma fantasiosa quimera. Escolhi saltar no escuro, abandonar o porto seguro em que me encontrava e seguir num mar proceloso. Quem diria que um livro, comprado por causa de um sorriso maroto, poderia fazer tanto alarde!

Ps. Veio deste livro a citação que uso na descrição deste Blog!

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